No livro Como as Democracias Morrem, dos professores americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, os autores trabalham com dois conceitos fundamentais que eles denominam de normas não escritas que precedem e dão sustentação às democracias: a tolerância mútua e a reserva institucional.
A tolerância mútua, basicamente, é não encarar os adversários no jogo democrático como inimigos. Nas palavras dos autores: A tolerância mútua diz respeito à ideia de que, enquanto nossos rivais jogarem pelas regras institucionais, nós aceitaremos que eles tenham direito igual de existir, competir pelo poder e governar. Podemos divergir, e mesmo não gostar deles nem um pouco, mas os aceitamos como legítimos. (...) Dito de outra forma, tolerância mútua é a disposição dos políticos de concordarem em discordar.
Já a reserva institucional é um conceito mais rico e mais sutil. Diz respeito a não abusar das prerrogativas que o direito nos concede. Nas palavras dos autores: ... reserva institucional pode ser compreendida como o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito. Quando as normas de reserva são robustas, políticos não usam suas prerrogativas institucionais até o limite, mesmo que tenham o direito legal de fazê-lo, pois tal ação pode pôr em perigo o sistema existente.
Transpondo esses conceitos para a vida social, especialmente o conceito da reserva institucional, chegamos à conclusão que também no exercício dos direitos que somos titulares cabe-nos exercê-los com reserva, afinal o direito nada mais é que um convenção em que as pessoas concordam que, para viverem em comunidade, algumas regras devem ser observadas. Assim como o dinheiro, o direito também está estabelecido sobre uma relação de confiança. Não há um direito natural, propriamente dito, se não como concepção filosófica, pois quem o garante é o Estado, um criação humana, não a natureza. Basta a ver que o crime, embora proibido pelo direito e pelo Estado, é uma realidade social. Embora todas as advertências da legislação, algumas pessoas, por índole ou por necessidade – essa é uma outra discussão interminável – optam por pagar o preço que a vida criminosa lhes impõe. Então, apesar das advertências: “não matarás” e “não roubarás”, as pessoas matam e roubam. O recurso à violência é sempre uma possibilidade. Por isso, para que uma sociedade mantenha um mínimo de vida social viável e organizada, precisamos estar conscientes disso:
que o direito é uma construção frágil que tem de ser preservada no exercício diário que fazemos dele, pois a sua sobrevivência depende de uma organização social que nos atribui essa titularidade. Não é, contudo, o que ocorre. Algumas pessoas comportam-se como se os direitos que a Constituição Federal nos assegura fossem absolutos, não pudessem jamais serem alterados e que ninguém ousaria no privar deles. No entanto, é o que vemos diuturnamente acontecer hoje no Brasil.
que é preciso não abusar do seu direito de vida – individual – e de propriedade – para ficar apenas nos mais básicos. O que ocorre, contudo, é que as pessoas comportam-se como se esses direitos fossem absolutos – e num certo sentido o são, afinal nos choca que alguém possa tirar a vida de outrem ou apossar-se de seus bens, mas considerando-se que isso ocorre, esse absolutismo é apenas moral, não real – e, por consequência os exercem de forma absoluta, descolados da realidade que os cerca, sem a menor consideração pelo tecido social em que estão inseridas, ou seja, sem reserva e discrição, sobretudo se você vive numa sociedade perigosa e carente, como de resto é a maior parte do Brasil - ainda que sejamos a 8ª economia do mundo.
O direito é essencialmente uma criação humana, um produto cultural e, como tal, terá o viés que tiver porque as pessoas em uma determinada sociedade e em uma determinada época assim concordaram que teria. Ademais, a força que o garante também é a força que pode mudá-lo ou destruí-lo, seja por parte do povo, seja por parte do aparelho de Estado.
Assim como as pessoas, comportam-se a instituições. A classe política ou a Justiça, por exemplo. Os primeiros, com pouquíssima exceções nos dias atuais, não tem o menor pudor de abusar de suas prerrogativas, deitam e rolam na corrupção, vendem descaradamente seu voto em nome de interesses pessoais, apartam-se rápido dos ideias que deve reger a política, sobretudo da busca do bem comum. Já a Justiça, porta-se como uma vestal, encastelada no seu poder, distante da realidade comum do povo, fechada em seus ritos e procedimentos absurdos e complexos e seus prédios caro e imponentes, como um mundo à parte, levando muitas vezes a decisões totalmente descoladas da realidade, mas em estrita observância aos ritos legais.
Na sociedade, os movimentos negros, LGBTis, dos indígenas e das mulheres ganharam um grande impulso, no Brasil, após a Constituição de 1988. De tal forma que esses movimentos se afirmaram de uma forma que eles consideraram quase absoluta, que não haveria retrocesso possível, que era daqui para a frente. Muitas conquistas foram obtidas como a políticas de cotas, a legislação contra a violência doméstica e o feminicídio etc. Ocorre que não há nada natural na sociedade. Tudo são conquistas oriundas de lutas sociais e, portanto, tem natureza cultural e como tais, para serem mantidos, é preciso, de certa forma, que a sociedade concorde em mantê-los, ainda quando esses direitos estejam consagrados em códigos e nos costumes. Mas o lobo que há no homem sempre espreita e é preciso mantê-lo adormecido, não fazer muito barulho para não acordá-lo. Ocorre que os direitos conquistados pelas minorias e, sobretudo, pós Constituição Federal e pelos pobres, durante os governos Lula e Dilma despertaram o lobo e, frágil com a nossa democracia era – sim era, porque hoje é difícil saber se ainda vivemos numa democracia – acabou sucumbindo aos ataques que começaram com as manifestações de junho de 2013, se estendendo até os dias atuais.
Pode se situar o início da derrocada da nossa democracia em 2013 justamente porque na ânsia de lutar por mais direitos, a população, sobretudo os mais jovens, não se deram conta de que poderiam perder os que já haviam conquistado.
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