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MORTE E RENASCIMENTO

Num dos mais interessantes capítulos do romance A Fogueira das Vaidades, o escritor americano Tom Wolfe dedica-se à descrição da morte simbólica do protagonista Sherman McCoy, milionário de Wall Street, após sua prisão e execração pública, levada a efeito pelo promotor distrital do Bronx, Abe Weiss. Promotor que disputa a reeleição e cujo apelido, nos corredores da repartição, é capitão Ahab, por conta da sua obsessão em capturar o grande Réu Branco, numa referência ao personagem homônimo do romance Moby Dick, de Hermann Melville. Nesse capítulo, o autor descreve com brilhantismo como Sherman experimenta a morte simbólica do ego e como o sente, depois, renascer, transformado, para enfrentar o espetáculo midiático levado a efeito contra si por um agente da lei unicamente preocupado com a sua reeleição. É com esse espírito transformado, que Sherman decide enfrentar a imprensa como alguém que já não tem mais nada a perder, pois toda a vaidade do seu nome, do seu cargo e do seu status social foi devidamente incinerado na fogueira – daí o título do livro -, a partir do que a coisa certa a fazer é reestabelecer a verdade dos fatos e a sua inocência, custe o que custar.

Ao ouvir os discursos do presidente Lula, em seu terceiro mandato, e a sua disposição em fazer a coisa certa, independente das preocupações do que a mídia irá dizer, o mercado ou a classe política repercutir, não posso deixar de traçar um paralelo entre esse Lula de hoje, renascido, após sua prisão e o personagem principal do romance de Tom Wolfe.

Lula não parece mais disposto a fazer tantas concessões como foram feitas no passado. Ele sabe que as pessoas não são confiáveis, pois experimentou isso da pior forma: pela traição. Traição de todos aqueles que surfaram na onda dos seus dois governos, mas lhe deram as costas no momento mais difícil da vida.

Seu nome foi arrastado na lama e a sua reputação foi transformada em pó por uma imprensa empenhada em destruir as suas realizações e seu legado, engajada que estava num projeto de poder que começou com as manifestações de junho de 2013, passou pela Lava Jato e culminou na eleição de Bolsonaro.

Não quero dizer, contudo, que Lula esteja buscando vingança. Não! Afinal, não foi retórica de campanha a sua fala quando ele afirmou que em seu coração não havia espaço para o ódio e que havia deixado para trás o sentimento de revanchismo. Lula é inteligente demais para isso, evidenciando que o episódio da prisão e da morte simbólica do seu ego, assim como do personagem de Tom Wolfe, só serviu para deixá-lo ainda mais forte e mais sábio. Mais forte e mais sábio para compreender que as pessoas são essencialmente movidas por interesses e que esses interesses, muitas vezes, são irreconciliáveis, sobretudo quando oriundos da classe a que pertencem. Constatação que, para um homem que construiu sua trajetória em cima das negociações e dos acordos, deve ter representado mesmo a morte, pois, como compor interesses irreconciliáveis?

Isso deve ter ficado ainda mais claro para Lula durante a campanha. Como ele mesmo disse, a mais dura que já enfrentou, pois Bolsonaro usou de todas as armas, legais e ilegais, para vencê-lo, desde a compra descarada de voto, até o uso mais abjeto da máquina pública.

O que foi, afinal, a PEC Emergencial, aprovada nas vésperas da eleição, senão um cheque em branco posto nas mãos de Bolsonaro para comprar apoio com dinheiro público?

Foram mais de R$ 40 bilhões que lhe concedeu o Congresso Nacional, para turbinar o Auxílio Brasil e dar aos taxistas e caminhoneiros um auxílio mensal de R$ 1 mil mensais, até o fim de 2022, a propósito de um suposto estado de emergência por conta da pandemia. Pandemia que já se encontrava, então, sob controle. Sem falar da abolição do teto de gastos, das vedações da lei eleitoral e da lei de responsabilidade fiscal. Um verdadeiro escândalo, patrocinado pelo Congresso, comprado através das emendas secretas do Orçamento Federal. De outro lado, a Casa Legislativa ainda autorizou o governo a promover a desoneração de última hora dos combustíveis, o que iria criar – como de fato criou - uma bomba fiscal para o próximo governo, dado a redução da arrecadação de ICMS dos Estados.

Não bastasse tudo isso, o governo ainda lançou impunemente mão da máquina pública, mesmo durante as eleições, como no caso da Polícia Rodoviária Federal, acionada para parar ônibus que transportavam eleitores, no Nordeste, reduto eleitoral de Lula, a fim de embaraçar, dificultar, quando não impedir, que esses eleitores exercessem o direito sagrado do voto.

Medidas, em suma, que desnudaram a falta de compromisso de setores da sociedade e das instituições com a democracia. Especialmente destas últimas que poderiam, ao longo dos 4 anos de Bolsonaro, terem posto um freio aos desmandos do governo, com destaque para um PGR, praticamente conivente; dos militares, apaniguados com cargos públicos bem remunerados; do Congresso Nacional, sob a liderança do Centrão, o qual se fartou com verbas públicas do orçamento secreto e de setores da Justiça, das forças de segurança e da sociedade civil, em especial das igrejas evangélicas, alinhados com o bolsonarismo, não obstante as críticas que se fazia ao governo, especialmente na gestão desastrosa da pandemia, do meio ambiente e na questão dos direitos humanos das minorias.

O conjunto desses fatos devem ter deixado claro para Lula, afinal, que ao assumir a presidência ele precisaria adotar outra postura. Era preciso fazer o enfrentamento das instituições do Estado e da sociedade civil que haviam sucumbido ao bolsonarismo. Se havia alguma dúvida em relação a isso, os atos de terrorismo do dia 08/01 não deixaram mais margem para hesitação e retardo.

Há, contudo, que se ponderar que esse é um terreno novo para Lula. Um terreno no qual ele não se sente muito confortável e que ainda não sabe ainda muito bem como lidar. Basta ver como a disposição agressiva de Bolsonaro nos debates, durante a campanha, lhe causava desconforto e perplexidade.

Lula é um político de uma outra geração, de uma geração que vem das lutas sindicais, das greves do ABC paulista dos anos 80, do mundo do trabalho que já não existe mais e, sobretudo, do mundo analógico, não digital, não obstante seus esforços de atualização. Será um desafio extraordinário para ele fazer esse enfrentamento, pois além de estar trilhando um terreno novo, terá pela frente uma sociedade dividida, ainda muito polarizada, que continua a ser alimentada por fake News e instituições que ainda precisam provar o seu valor e a sua fidelidade à lei e à democracia.

Asssim como o Sherman do livro, Lula está mais preparado para enfrentar a demagogia, a mentira e o populismo, mas esse processo não parará por aí. Serão necessários muitos Lulas para enfrentar aquilo que a Lava Jato soube captar e cristalizar na sociedade: o ativismo jurídico e o punitivismo ao arrepio da lei e Bolsonaro na direita: o cinismo de se assumir racista, classista e excludente. A rigor o que sempre foi, mas que, contida pela lei e pelas instituições, mantinha-se no plano de uma certa normalidade das diferentes visões de mundo. Com o bolsonarismo essa contenção foi pro espaço e é, portanto, necessário fazer-lhe o enfrentamento, sem a possibilidade de acordos, anistias ou conciliações, mas com a pura e simples aplicação da lei, mediante a apuração e punição dos responsáveis pelos crimes cometidos ao longo dos últimos anos. Afinal, como já nos ensinou Bertrand Russel, a propósito do fascismo, é preciso ser intolerante com os intolerantes.

JPerez

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