A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 representou um duro golpe para a esquerda e mesmo para a direita liberal, civilizada, embora esta última, a partir de determinado ponto da campanha, quando percebeu que seus candidatos tradicionais, representados especialmente pelo picolé de chuchu do PSDB, não iam emplacar, aceitou pagar o preço de eleger um despreparado. Apostava que, com ele, afinal, conseguiria emplacar a sua agenda de destruição do Estado e, quem sabe ali na frente, voltar ao poder. Não supunha, contudo, que o homem fosse o lunático que todos os progressistas sabiam que era. Por conveniência, desespero e falta de opção, preferiu acreditar que não. Reconhecer isso, no entanto, logo se tornou inevitável, por ocasião, por exemplo, das manifestações pró- Bolsonaro no começo do seu governo, quando sua claque pedia o fechamento do Congresso e do STF ; depois, com o negacionismo do presidente diante da pandemia, levando a um número de mortos que se aproxima de 200 mil; e, agora, a sua inépcia e morosidade, juntamente com o Sancho Pança que está instalado no Ministério da Saúde, em diversificar o leque das vacinas contra o coronavírus a serem adquiridas, bem como de montar uma estratégia, minimamente pensada, para levar a cabo a vacinação da população no mais breve espaço de tempo.
A oposição, no entanto, parece não ter se recuperado do duplo golpe que sofreu: o primeiro, o de 2016, praticado na mão grande pelos derrotados da eleição de 2014 e o segundo, o de 2018, das urnas. Não encontrou, ainda, o discurso e as práticas corretas para fazer o enfrentamento do atual (des)governo.
Quando falo em oposição, penso, primeiro no campo progressista, representado pelos partidos do espectro à esquerda da política, e, em segundo, no seu maior representante, o PT. É compreensível que nos primeiros meses de governo, o PT rejeitasse a bandeira do Fora Bolsonaro, levantada por muitos já naquela ocasião, afinal, o partido, na figura da sua maior liderança, Luís Inácio Lula da Silva, sempre respeitou a vontade popular e essa, para sua perplexidade, havia preferido o capitão ao professor. E segundo, o partido, recém tinha passado por um processo de impeachment forjado pelos derrotados das urnas de 2014, com o PSDB à frente, para tirar do poder uma presidenta eleita democraticamente. O PT não queria repetir isso com Bolsonaro para não ser acusado de golpista, como acusara desde então o PSDB e o Vice traíra, Michel Temer, do PMDB.
Por trás dessa resistência, contudo, havia uma outra estratégia: deixar o presidente se desgastar para derrotá-lo nas urnas em 2022, até porque, como vice, Bolsonaro tem um general e o risco de radicalização do regime com um militar de carreira, era grande, e, mutatis mutandis, trocar Bolsonaro por Mourão, politicamente, seria trocar seis por meia dúzia, com a desvantagem de Mourão ser civilizado e ter rompantes de lucidez e organização mental, algo inexistente no capitão. Seu governo poderia dar certo.
Ocorre que essa estratégia da oposição, capitaneada pelo PT, está se tornando insustentável diante da tragédia desse governo em todos os setores. Tragédia especialmente agravada pela pandemia.
Um partido, mais do que uma agremiação política que disputa eleições periodicamente e que ocupa o espaço institucional nas três esferas do poder, é um organismo com determinadas responsabilidades perante a sociedade, especialmente perante aqueles que acreditaram no seu projeto político, o qual não pode se reduzir a disputas eleitorais ou de poder, sejam estas no interior do partido ou nos espaços institucionais conquistados, leia-se, cargos. Um partido precisa de vez em quando reler sua carta de princípios e resgatar os motivos pelos quais existe e que inspiraram gerações a militarem de forma gratuita por um projeto de país melhor, mais justo e inclusivo, sendo este o caso do Partido dos Trabalhadores.
O atual governo está dando ao campo progressista uma série de oportunidades de ocupar o espaço político, para, mas adiante, apeá-lo do poder. Para além da mera institucionalidade, das arenas parlamentares, judiciais e eleitorais, está na hora de a esquerda voltar a ocupar o protagonismo do espaço político que a inépcia do atual governo está lhe dando de bandeja. Senão vejamos:
Na área ambiental, o governo age em descompasso com a agenda mundial para o setor. Nem o agronegócio pode mais descurar da proteção ambiental se quiser continuar a colocar seus produtos lá fora. E o agro sabe disso. Não obstante, o atual governo faz pouco caso da questão ambiental, abrindo flanco para a esquerda fazer a denúncia e estabelecer pontes com o agro nessa questão.
Na área da economia, o governo promove um verdadeiro desmonte do investimento público, sobretudo via Petrobrás, levando à destruição da indústria de óleo e gás e à política suicida de desinvestimento da maior empresa estatal brasileira, com entrega de ativos estratégicos para a iniciativa privada. Não seria o caso de a esquerda promover um grande debate nacional sobre o tema? Até que ponto a nossa soberania é ameaçada pela entrega da nossa matriz energética na mão de estrangeiros, seja através da privatização branca da Petrobrás (com a venda da rede de distribuidores, da rede de dutos de gás, dos poços do pré-sal), seja através da privatização da Eletrobrás?
Na área da saúde pública, quando nos aproximamos de atingir a marca de 200 mil mortos pela Covid-19, com uma segunda onda de infecções batendo à nossa porta, após mais de meses de medidas de distanciamento social, o não-presidente e seu não-ministro da Saúde criam, agora, toda sorte de embaraços para a aquisição da vacina, sem um plano para a sua aplicação ao conjunto da população o mais rápido possível. Não deveria a esquerda montar um grupo de trabalho para propor soluções ao problema e, em conjunto com os governadores e prefeitos, lançarem mão dos mecanismos legais e institucionais postos à sua disposição pela legislação aprovada este ano para o enfrentamento da pandemia, tais como a desnecessidade do registro no ANVISA para a importação e distribuição de insumos para fazer frente à doença?
Mas esse espaço político, no caso da última canelada do governo, está sendo ocupado pela direita, seja na figura de Rodrigo Maia, do DEM, que como Presidente da Câmara Federal já deu a letra aos governadores para utilizarem os mecanismos dessa legislação, seja pelo Doria, do PSDB, na sua cruzada pela aprovação da vacina chinesa Coronavac.
E a esquerda, onde anda nesse debate?
Por fim, na área institucional, cabe à esquerda fazer mais barulho sobre a leniência das autoridades para apuração dos esquemas da família Bolsonaro. A complacência das instituições com o bolsonarismo. Os conchavos do mais novo aliado do presidente, o Centrão, com a sua velha política do toma lá, dá cá. (Cadê o Presidente que ia inaugurar uma nova forma de fazer política no país, longe do presidencialismo de coalizão?) A desmoralização das Forças Armadas, que rasgam a farda para ocupar postos no governo, para si e para os seus. A guerra ideológica e insensata com a China, nosso maior parceiro comercial.
São muitas as frentes, enfim, que a esquerda poderia estar abrindo contra esse governo, ocupando o espaço político deixado pela sua incompetência e má intenção, levantando bandeiras que poderiam aglutinar as forças populares em seu entorno, a fim de dar alguma esperança a quem já se sente desalentado, diante da leniência das autoridades e da grita infrutífera e tardia de uma mídia pouco confiável. Não dá para continuar apostando tudo na luta institucional, nas arenas parlamentares, eleitorais e judiciais. Arenas estas muitas vezes já comprometidas. A esquerda tem o dever moral de fazer o enfrentamento político e popular das políticas de destruição e morte desse governo, em nome não apenas daqueles que representa, mas até mesmo daqueles que não tem consciência do que está acontecendo. É para isso que os partidos políticos existem, muito mais do que para a mera disputa eleitoral, de poder e cargos.
Está mais do que na hora de a esquerda, por exemplo, empunhar a bandeira do Fora Bolsonaro, assumindo os seus riscos e consequências, a fim de injetar ânimo naqueles que ainda acreditam num país melhor, que a razão é mais forte que a ignorância e a vida, do que a morte.
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