Aquele que era no seu começo um governo sem um projeto de governo porque resultado de uma eleição atípica – a rigor ninguém acreditava que Bolsonaro poderia ganhar e é bem provável que nem ele mesmo – aos poucos vai adquirindo as feições do que sempre foi: um governo sem qualquer projeto mesmo.
Sustentado pela política econômica ultraliberal de Guedes, um dos pilares fundamentais do governo – os outros três são os militares, as hostes evangélicas fundamentalistas e agora o Centrão –, o que lhe garante o apoio das elites econômicas do país, o Estado proposto por Bolsonaro é exatamente este: a falta de Estado, ou, como diria um atávico Luís XIV, o Estado sou eu! Sonho edulcorado de Bolsonaro de governar sem peias, nem amarras, sem freios e contrapesos. Em outras palavras, sem os demais poderes, como um ditador. Mas não apenas isso, um ditador sem Estado, porque é isso que Bolsonaro propõe: ser o líder de um Estado sem qualquer tipo de regulamentação.
Entram nessa conta, desde o começo do governo, a desregulamentação das normas de trânsito – cadeirinha para crianças, controladores de velocidade na estrada, pontuação na carteira de motorista. A flexibilização das normas ambientais e o desmonte dos órgãos encarregados da fiscalização dessas normas. A liberação do porte de armas e do controle de munições. O desrespeito às normas sanitárias e dos preceitos da ciência no combate ao coronavírus. A interferência na Polícia Federal quando esta se aproxima do seu núcleo familiar, assim como no COAF, hoje denominado UIF – Unidade de Inteligência Financeira, sob gestão do Banco Central, após este ter descoberto o esquema de rachadinha na Assembleia Legislativo do Rio de Janeiro, tendo entre seus implicados, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho 01 do Presidente. A adesão do Centrão ao governo, com todo o histórico de negociatas que costuma caracterizar esse grupo político quando alinha-se a um governo. O ataque do Presidente aos governadores e aos prefeitos, pondo a população contra eles nos seus desesperados esforços para conter a pandemia e, como não podia deixar de ser, contra a Constituição Federal, o último bastião de democracia que ainda resta no país.
Tal estado de coisas só tem um paralelo: as comunidades do Rio de Janeiro dominadas pelas milícias, cuja única lei é a do poder paralelo, as quais, com o uso das armas, cumprem a função que há muito o Estado deixou de fazer: garantem a paz social, cobram impostos, autorizam o funcionamento do comércio, controlam a circulação de pessoas, bens e mercadorias, constroem e vendem imóveis em áreas invadidas. Não por acaso, Estado de origem do atual presidente.
Espelhando-se nesse modelo, tão seu conhecido, Bolsonaro tenta replicá-lo em todo país, fazendo do Brasil um Estado miliciano.
É um método de governar nunca antes visto no Brasil, em que o Presidente investe de forma violenta, direta e sistemática contra toda forma de organização do estado nacional. E só não avança mais porque há um apoio titubeante das Forças Armadas aos seus arroubos autoritários, principalmente depois do desastre que tem se mostrado a atuação do governo na pandemia. Forças das quais Bolsonaro parece gradativamente depender menos à medida que grupos armados tomam conta de determinados territórios do país, especialmente na Amazônia e as polícias dos Estados alinham-se cada vez mais ao bolsonarismo, como ficou evidente no recente episódio do massacre do Jacarezinho, no Rio de Janeiro.
Do lado da política nada acontece. Com a eleição de Lira, do Centrão, para a Presidência da Câmara Federal, mais de uma centena de pedidos de impeachment repousam em berço esplêndido nas gavetas do Congresso Nacional, entre outras razões, como se descobriu recentemente, graças ao orçamento paralelo de R$ 3 bilhões com os quais Bolsonaro administra sua base aliada, com liberações de recursos para os amigos do rei, para compras superfaturadas, conforme matéria do jornal Estado de São Paulo do último fim de semana.
O único alento, por esses dias, vem da CPI da Covid, instalada no Senado Federal, a qual parece ter um começo promissor para apurar a responsabilidade do Presidente da República e seus asseclas por grande parte das mais de 400 mil mortes provocadas pela Covid-19.
Bolsonaro, contudo, procura demonstrar que não se intimida. Como é de hábito dobra a aposta para ver até onde as instituições vão. Circula de moto, sem capacete. Provoca aglomerações e leva na carona um exemplo de “empreendedor” que se dá bem nesse ambiente sem lei, o popular Véio da Havan, dono das lojas Havan, notório fraudador de impostos e contra o qual o MPF/SC há poucos dias ingressou com ação milionária por diversos crimes[1].
Até quando as instituições vão ceder espaço a esse desmonte do Estado é algo que a todos intriga. Há uma nítida escalada de forças de lado a lado que tudo indica não acabará bem. A CPI avança e em algum momento ela terá a sua hora da verdade. Tudo também dependerá do rumo que a pandemia tomar, o curso da vacinação e a retomada econômica, não apenas aqui no Brasil, mas no mundo, o que pode garantir um ciclo de crescimento que ainda dê algum fôlego ao governo. Em este permanecendo até 2022, Bolsonaro já deu a letra em relação ao voto impresso, prenunciando o que Trump já fez nos Estados Unidos com relação ao voto pelo correio: uma antecipação de desculpa para não aceitar os resultados das urnas caso estes lhes sejam desfavoráveis.
Em qualquer cenário, no entanto – abertura de processo de impeachment ou eleições o ano que vem - é bom que as instituições – Congresso Nacional, STF e Forças Armadas, com especial destaque a estas últimas - estejam devidamente preparadas para garantir não apenas a sobrevivência do Estado Democrático de Direito, mas do próprio Estado brasileiro, pois no que depender desse governo, seja numa eventual vitória em 2022 ou numa derrota, é o Estado Brasileiro que estará seriamente ameaçado pelo estado miliciano que sub-repticiamente vai se constituindo no país.
[1] http://www.mpf.mp.br/sc/sala-de-imprensa/noticias-sc/2004/201101131416500200-acao-penal-do-ministerio-publico-federal-denuncia-megafraude-nas-empresas-havan-blumenau
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