Não é de hoje que o germe do fascismo vem sendo gestado entre nós. Desde que a ditadura expirou, em 1984, com as Diretas Já e com a Constituição de 1988, as elites econômicas do país perceberam que não podiam mais contar com o aparato repressivo para a solução dos conflitos. A democracia incipiente e o pluripartidarismo exigiam uma nova forma de encaminhamento desses conflitos: o diálogo e a negociação. Para isso, mecanismos mais insidiosos de formação dos consensos precisavam ser acionados, como a manipulação da opinião pública, através da mídia e o lobby na política. Nesse cenário o poderio das grandes emissoras de TV, rádio e jornais, gestado e consolidado durante o regime militar, especialmente da Rede Globo, foi decisivo. Tal fato ficou evidente nas eleições de 1989, quando a disputa se polarizou entre o candidato das elites, Fernando Collor de Mello e o candidato em ascensão, representante da classe trabalhadora, Luiz Inácio Lula da Silva. Foi descarado o uso de uma fake news – termo então desconhecido na época – às vésperas das eleições, mais precisamente no último debate, promovido justamente pela Globo, para sepultar as pretensões de Lula: um dossiê vazio foi colocado nas mãos de Collor para aumentar o impacto de supostas denúncias que este teria contra o petista. Isso selou o resultado do pleito eleitoral que até aquele momento estava com seu resultado indefinido.
Vencido o pleito por Collor, o poder concentrou-se nas mãos de um candidato até então relativamente pouco conhecido no cenário nacional. Candidato que se elegeu por se apresentar como uma força jovem e renovadora da política, em cima do slogan de caçador de marajás. Título com que passaram a ser conhecidos e demonizados os servidores públicos. Collor, no entanto, era uma incógnita até mesmo para o campo ideológico que o elegeu, como sói acontecer com a direita oportunista: aposta-se no cavalo vencedor, desde que este tenha algum vínculo com ela e disfrute de boas chances de vencer. Quanto ao programa, ao partido e à tradição política são coisas que não contam. Depois trata-se de enquadrá-lo. Acontece que Collor, que dizia ter aquilo roxo, não era exatamente o candidato que a elite conservadora queria, por ser imprevisível e incontrolável. Temor que depois acabou se comprovando verdadeiro, pelas medidas heterodoxas que tomou na economia e na política. Na economia, congelando a poupança dos brasileiros. Na política, ao pretender governar sem o Congresso Nacional. Resultado: pouco mais de dois anos após tomar posse, Collor renuncia ao cargo para não ser cassado. Quem o sucede cumpre o pacto da estabilidade, mantendo a hegemonia da elite no poder.
Lula, em 2002, para lograr ganhar a confiança dessa elite teve, praticamente, de assinar um pacto de não agressão, consubstanciado na Carta ao Povo Brasileiro, na qual, o futuro Presidente, comprometia-se a não mexer nos pilares da economia, consubstanciados no combate à inflação, no controle das contas públicas e no respeito aos contratos. Mas foi nas frinchas desse compromisso que Lula governou, incluindo quase 40 milhões de pessoas na economia, sem, contudo, mexer nos privilégios dos mais ricos. Quando estes, no entanto, perceberam que a distância entre as classes estava diminuindo - que a faxineira já não se submetia a trabalhar por um salário de fome, que o pobre estava entrando na universidade, tirando as vagas de seus filhos, frequentando aeroportos – mas, especialmente depois que Dilma revelou não ter a mesma habilidade de Lula para manter as rodas da economia e da política girando, o golpe tornou-se praticamente inevitável.
Com isso a elite reencontra-se consigo mesmo, atualizando os métodos abandonados por ocasião do fim da ditadura para a solução dos conflitos: o uso da força, ainda que agora sob um verniz de legalidade. Processo radicalmente aprofundado com Bolsonaro, o pior dos candidatos em termos civilizatórios, mas que representou naquele momento o único candidato capaz de derrotar o PT – às vésperas de conquistar a 5ª eleição consecutiva, mesmo com seu maior líder impedido – encarnando os ideais de um estado autoritário, com a benção das urnas. O sonho de consumo da classe dominante.
Esse processo de atualização dos métodos autoritários, no entanto, teve uma longa gestação. Começou no primeiro dia em que o Brasil abandonou a opção da ditadura pela democracia e foi devidamente alimentado pela mídia que desde a primeira hora arvorou-se na guardião da moralidade pública e da eficiência na economia. Sucessivos e incansáveis ataques, nesses trinta anos, desde a promulgação da Carta Magna, foram desferidos contra a ineficiência do Estado, a corrupção - seletiva - na política e a inépcia da Justiça em acabar com o crime e dar segurança aos cidadãos. Pautas recorrentes das grandes emissoras de TV, quase um lugar comum das programações, em especial dos telejornais e dos programas que exploram a violência das grandes cidades, gerando a indignação na população contra a classe política e, por tabela, contra a novel democracia, apresentada como incapaz de dar respostas satisfatórias aos anseios da população.
Estava, pois, plantado o ovo da serpente, o caldo de cultura em que depois se banhariam as manifestações de 2013, o golpe de 2016 e a ultra direita de Bolsonaro, com o seu bordão: tem que acabar com isso daí! numa generalização perigosa a tudo o que os 30 anos da Constituição cidadã de Ulisses Guimarães logrou conquistar em termos de estado de bem estar social, tais como o SUS, a universalização da educação básica, a rede de proteção social entre outros.
Amargamos, pois, o resultado desse lento processo de gestação do estado autoritário, com os valores da democracia sendo paulatinamente erodidos pela grande mídia, em especial nos últimos anos, devido à repercussão dada à operação Lava Jato. O que acabou por levar a população à descrença na política, como a instância mediadora dos conflitos; do devido processo legal como meio eficaz para realizar a justiça e do Estado como indutor do desenvolvimento nacional e como mediador das desigualdades sociais.
Em seu lugar, ofereceu-se a alternativa da violência e do rompimento do estado democrático. Alternativa prontamente aceita pela população nas últimas eleições, dado que esta se encontrava ainda mais brutalizada pela crise econômica, agravada no governo Temer, o qual se aproveita do momento para fazer passar a pauta da classe dominante, como o teto de gastos, que reduziu drasticamente o investimento do Estado em políticas públicas; a reforma trabalhista, sob pretexto de gerar empregos, quando na verdade só subtraiu direitos dos trabalhadores e o propalado saneamento da Petrobras, que levou ao cancelamento de todos os contratos de construção das plataformas de petróleo e de navios sondas no pais e a adoção da nova política de preço dos combustíveis, os quais passaram a variar quase que diariamente, seguindo as cotações internacionais do barril de petróleo e do câmbio. Em resumo, pautas criminosas contra uma população acuada pela violência e o desemprego.
Quando Bolsonaro se apresenta, nas eleições de 2018, como uma terceira via, entre a política tradicional do PT, PMDB e PSDB, a população o encara como o mais novo salvador da Pátria. Não à toa passa a ser denominado mito por seus mais ardorosos fãs, encarnando a negação da velha política e dos velhos hábitos dela decorrente, como a troca de cargos por votos no Congresso, do chamado presidencialismo de coalização. O problema é que junto com a negação desses velhos hábitos, aceitou-se também negar os mais básicos valores de uma sociedade democrática e as conquistas sociais da Constituição de 88. Negação esta que encontrou eco numa população já devidamente domesticada para aceitar a tese de que estes valores e conquistas foram a origem da crise, quando foi graças a estes valores e conquistas que nos tornamos uma sociedade menos desigual e injusta.
Foi através desse consenso, produzido por uma longa pregação contra a política, contra o estado democrático de direito e contra os direitos sociais que nos tornamos fascistas – ou coniventes com o fascismo. Afinal quem, diante da tela da TV, já não imprecou contra os políticos corruptos, contra a leniência da Justiça e a ineficiência dos gastos do Estado?
Foi este um trabalho preparatório para que aceitássemos como natural colocar no lugar da política, um estado autoritário; no lugar do devido processo legal, o abate de suspeitos em via pública; no lugar dos direitos sociais, a privatização do Estado, inclusive da previdência pública; no lugar da presunção de inocência, o cumprimento da penas antes do trânsito em julgado. Alternativas estas que, em nome de um certo ativismo jurídico e da eficiência do Estado, significam, na verdade, o sacrifício da liberdade individual, dos direitos sociais e da própria soberania do país, levada a efeito por uma mídia corrupta e venal, para júbilo de uma elite que sente-se novamente em seu elemento: a exploração do trabalho e das riquezas nacionais, não apenas sem contestação, mas até com a concordância de grande parte de população, manipulada pela TV e, mais recentemente, pelas fake News e pelas mídias sociais.
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