A GALINHA
A panela de feijão fumegava sobre o fogão à lenha e as crianças tinham sido recomendadas por minha mãe – portanto meus irmãos – para que cuidassem do fogo e, na medida da necessidade, colocassem água no feijão. Ela iria às compras e voltaria em breve. Eles poderiam continuar brincando, desde que tomassem estes dois cuidados. Deles dependeria, por hora, o almoço, e ao se referir assim, minha mãe se referia à tremenda responsabilidade daquelas duas crianças em cuidarem da comida do pai que vinha esfomeado do serviço, para o qual em seguida tinha de retornar.
Tudo transcorria dentro da normalidade até que uma galinha teve a infeliz idéia de pular pela janela para dentro de casa. Meus irmãos, zelosos, não podiam permitir que o animal ficasse ali. Assustaram-na para que voltasse por onde tinha entrado, mas a infeliz da galinha parecia não saber o caminho de volta, decerto por não reconhecer por dentro a casa que vira de fora. De repente teve uma iluminação e de um golpe saltou sobre o fogão que ficava próximo à janela, pousando sobre a alça da panela onde o feijão chiava a fogo solto. Apavorados com aquela manobra perigosa do animal, meus irmãos não pensaram duas vezes antes de assustarem o bicho uma última vez. Só que no impulso que ela tomou para se projetar janela afora, a panela adernou de lado e emborcou rumo ao chão com todo o feijão dentro.
Que sujeira!
Tudo por causa daquele bicho burro e inconveniente. Mas agora não havia tempo a se perder em lamentações. Era preciso agir e isso significava recolher o feijão que tinha se espalhado pelo chão para evitar o pior: que a mãe chegasse e se deparasse com uma cena daquelas. Uma bela surra com certeza seria inevitável.
- Corre na porta da frente para ver se a mãe não está vindo! – disse o mais velho, que todos conheciam como Chinho, para o menor que ainda não havia se recuperado do susto. Desperto de seu atordoamento e na esperança de remediar o irremediável, o Doca correu até aporta da frente. Enquanto o Chinho se armava de uma colher e fazia o possível para pôr de volta na panela o feijão espalhado pelo assoalho.
Para alívio de ambos, nem sinal da mãe, mas quando o Doca se voltou para dizer isso ao Chinho, o pior que podia acontecer entrava pela porta dos fundos, após ter dado a volta na casa, como era de hábito. O Doca ainda teve tempo de fugir de onde estava, mas o coitado do Chinho não teve tempo sequer de perpetrar o primeiro golpe do seu crime. A mãe o ergueu do chão pela orelha, sem ao menos perguntar o que tinha acontecido.
Como eu disse aquilo se tratava do inexplicável, pois como é que ela iria acreditar numa história daquelas, de uma galinha ter podido provocar tamanho estrago, sobretudo naquele momento de raiva e com o almoço ainda por fazer. Só mais tarde esta história pôde receber crédito que merecia, até porque não havia outra versão para contar. Mas naquele momento este improvável movimento do bicho se apoiando na alça da panela para alçar vôo não tinha convencido ninguém, muito menos para lhes livrar da surra que levaram.
PS: O Doca apanhou mais tarde, após a inevitável volta para casa, que algumas vezes podia se prolongar até a noite. Além do mais aquele não tinha sido o seu dia de sorte: nenhuma visita tinha aparecido. Quando isso acontecia era comum o fujão chegar junto com a visita para a mãe ir se acostumando com a idéia de deixá-lo vivo. Impossibilitada de dar vexame na frente de estranhos, a raiva dela ia passando, até esquecer o ocorrido. O negócio depois era aparecer o mínimo possível para ela não se lembrar. Às vezes essa estratégia dava certo, mas naquele dia, o Doca não teve essa sorte.
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