Para entendermos as ações de uma pessoa, temos que antes entender o seu sistema de crenças e valores. Desde o começo, sempre me causou perplexidade as ações do governo Bolsonaro no enfrentamento da crise sanitária da Covid-19, sobretudo porque, personalista como é, as decisões desse governo tem a cara do presidente. Ficava, então, me perguntando o que poderia estar motivando as ações do 1º mandatário da nação, de regra, contrárias à ciência e às recomendações dos especialistas.
Ignorância? Incompetência?
Em alguns momentos, até parecia que o presidente estava sabotando os primados da ciência e as recomendações sanitárias. Era difícil, no entanto, acreditar que estas atitudes pudessem fazer parte de um plano macabro de dizimação da própria população. Não fechava. Afinal, que mandatário conspira contra seu próprio povo? Não fazia sentido.
Eis, no entanto, que há poucos dias foi publicada uma pesquisa realizada pela Faculdade de Saúde Pública da USP, em conjunto com a organização social latino-americana, Conectas Direitos Humanos, a qual examinou, mais de 3 mil atos normativos, administrativos e declarações do governo federal, no combate à pandemia, no período de março de 2020 a janeiro de 2021. A pesquisa chega à chocante conclusão de haver “... uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República.” A pesquisa afirma, ainda, em seu editorial: “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.
Para subsidiar essa conclusão, a pesquisa traça uma linha do tempo composta por três eixos, em ordem cronológica, abarcando: 1) atos normativos da União, incluindo os vetos presidenciais; 2) atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia; e 3) a propaganda contra a saúde pública, consubstanciada em discursos do presidente e seus asseclas contra as medidas de combate à pandemia, além de disseminação de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o proposito de desacreditar as autoridades sanitárias e a adesão da população às recomendações de saúde.
Ou seja, há uma coordenação das ações do governo federal contra as medidas de combate à pandemia, revelando o propósito deliberado de expor a população à contaminação.
Perplexo, me pergunto: o que leva uma pessoa a agir dessa forma?
Lendo os dados e as conclusões da pesquisa a resposta fica fácil. Segundo a crença e os valores do presidente, a população precisa se contaminar para adquirir a tal da imunidade de rebanho, sem vacinação, para voltar, o mais rápido possível, à atividade econômica. Imunidade, a respeito da qual, nem a ciência ainda sabe quanto tempo dura e se ele seria eficaz contra as mutações que o vírus sofre.
Ademais, a imunidade de rebanho, sem vacinação, requer um nível de contaminação da população muito alto para tornar-se efetiva. Segundo os especialistas, em torno de 60% da população, o que levaria à contaminação de 126 milhões de pessoas! Considerando a taxa de mortalidade da população por Covid-19 de 1 a 2%, o presidente considera aceitável que em torno de 1,3 a 2,5 milhões de pessoas percam a vida nesse processo! Isso sem falar do colapso do sistema de saúde, impedindo que as pessoas com outras comorbidades tenham assistência, elevando esse número para patamares ainda maiores.
Ou seja, uma insanidade!
É claro que o presidente não declara abertamente esse propósito quando aglomera, quando não usa máscara e desestimula as pessoas a usarem, quando chama os brasileiros de maricas por estes adotarem as medidas sanitárias com medo de se contaminar, quando prescreve medicamento comprovadamente sem eficácia para o tratamento da Covid e quando retarda a aquisição de insumos e da própria vacina para vacinação em massa da população. Ele sabe que isso poderia enquadrá-lo em algum artigo do Código Penal e por crime de responsabilidade. Mas a análise das suas ações, ao longo do tempo, consubstanciadas em edição e vetos de normas, declarações pública e obstruções aos trabalho das autoridades subnacionais e da área de saúde, mapeadas pelo estudo realizado pela Faculdade de Saúde Pública, desnuda seu intento. Se consideramos que ações são mais importantes que as palavras e a ações estão aí para corroborar as palavras, o que desmonta a tese de que o presidente está só brincando ou não está falando a sério, caberá aos demais poderes, dentro da estrutura de pesos e contrapesos da democracia, analisarem até quando serão cúmplices dessa política genocida. Assim como as Forças Armadas, dado o grau de comprometimento destas ao fazerem parte do governo.
Bolsonaro atua para disseminar o vírus e isso já levou mais de 200 mil mortes. O Amazonas agora vive um agravamento da situação de contaminação, com colapso do seu sistema de saúde. Falta insumo básico, como o oxigênio, levando a óbito pessoas que poderiam se recuperar. Lembremos que o Amazonas foi o primeiro estado, no começo da pandemia, que teve um número de casos de contaminação e mortes elevados. Depois a doença se espalhou por todo país. Desvendado o intento macabro do presidente, a população deve manifestar o seu inconformismo à esta política, até para dar respaldo às autoridades encarregadas pela Constituição Federal para agirem, sob pena do agravamento da doença em território nacional e da crise econômica nos levar ao caos.
Depois do que se revelou, contudo, em relação às intenções do presidente no combate frouxo à pandemia, a pergunta que se faz é: estaria o presidente, em seus delírios de poder, também contando com isso, para, num eventual agravamento da doença em todo território, decretar um estado de defesa e depois de sítio, com o fim de governar como sempre desejou, como um autocrata, sem as amarras do jogo democrático, das negociações que precisam ser feitas com o Congresso para governar, sob a vigilância do STF, o guardião da Constituição?
Essa é uma questão que esperamos as autoridades não paguem para ver. Que ajam antes, a bem da nação, do estado democrático de direito, da Constituição Federal e dos direitos e garantias fundamentais, dentre os quais sobressai como o mais importante, o direito à vida e à saúde.
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