O caso Decotelli, o mais novo Ministro da Educação do governo Bolsonaro que acabou não sendo, ilustra de forma eloquente o preconceito racial arraigado em nossa sociedade. É claro que o candidato a Ministro errou crassamente ao dar informações falsas sobre os títulos de doutorado e pós-doutorado que não detinha e sobre ser docente de uma instituição que depois o desmentiu, sendo que este último fato ainda não está devidamente esclarecido. O fato é que por conta desta celeuma o Ministro acabou demitido antes mesmo de assumir.
Quando comparamos, contudo, o que ocorreu com o Ministro e outros membros do governo que também mentiram miseravelmente sobre o seu currículo e, não obstante, ainda estão em seus cargos - refiro-me à Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves e ao Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, dizendo a primeira ser mestre em Educação e Direito e o segundo deter um doutorado em Yale, EUA, titulações que depois se revelaram falsas – além de não ter havido esse linchamento público, como ocorreu com o ministeriável Decotelli, ambos não saíram do governo. Não que Decotelli, por isso, deveria ter seus erros perdoados pelo presidente e ter a sua nomeação mantida. Essa é uma decisão, em última instância, que só cabe ao presidente ter. O caso não é esse.
O caso é que quando um negro comete um erro desses, num país de larga tradição racista, parece que a sua condição racial ganha vulto e a ela atribua-se inclusive a causa do próprio erro. Quando, em relação a Damares e a Ricardo Salles, em nenhum momento tiveram esse mesmo questionamento da sua condição racial para os erros cometidos. É como se disséssemos: não sou racista desde que o negro não erre! Ou desde que o negro não seja ruim! Ou desde que o negro não faça isso ou aquilo! É como se a condição negra já colocasse a pessoa em um déficit em relação às demais, fazendo com que esse déficit venha à tona quando qualquer coisa na sua vida não saia como esperado. Como se o branco também não errasse, não fosse mau – e como os há -, e não fizesse muitas besteiras na vida como todos, ademais, estão suscetíveis a fazer. Já ao negro, ao indígena, à mulher e ao gay não é dado esse direito, o direito de errar, porque se o fizerem, será a sua cor, a sua raça, o seu gênero ou a sua opção sexual que serão apontados como os responsáveis, não a sua condição humana, de seres imperfeitos e falíveis.
Façamos, pois, uma reflexão e identificamos o racismo, a misoginia e a intolerância profunda e camuflada que há em nós, mesmo quando aceitamos essas diferenças. Basta que as pessoas que as detenham também difiram de nós em outros campos, como nos hábitos, costumes, comportamentos e, às vezes, até de concepção de mundo e ponto de vista, para que o julgamento moral venha – às vezes até mesmo inconsciente ou como resíduo de um preconceito mal resolvido - e resgate essas diferenças que supúnhamos superadas, imputando a elas a causa para nossas divergências. Isso fica clara em manifestações como essas: também, olha a cor do sujeito! Ou: só podia ser mulher! Ou ainda: isso é coisa de veado! São nesses momentos que a intolerância e o preconceito afloram: quando o outro, na sua condição de homem ou mulher, apenas erra e tem como agravante da pena o fato de ser negro, ser mulher ou gay.
Vençamos, pois, o preconceito e a intolerância arraigados em nós, separando o julgamento que fazemos das ações e comportamentos da pessoa da sua condição racial, de gênero ou de opção sexual, as quais não determinam o seu caráter. Afinal essas condições não tornam ninguém pior, nem melhor. Apenas nos tornam diferentes. Ou seja, não menos sujeitos a erros e desvios.
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