Consumada a eleição de Bolsonaro para Presidente da República, no último dia 28 de outubro de 2018, compete aos que não são partidários do seu campo ideológico - entre os quais eu me incluo, com orgulho - tentar entender o que aconteceu. Eleição esta marcada por muitos acontecimentos e por um nível de polarização e agressividade inédito nesses 30 anos da jovem democracia brasileira.
Primeiro fato a destacar é que essas eleições representam o ápice de um movimento que começa em 2015, com o questionamento do PSDB, de Aécio Neves, das eleições de 2014 e que culminou, em agosto de 2016, com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff (PT). Na esteira desses dois episódios, a Lava Jato incriminou o Presidente golpista Michel Temer (MDB) e o próprio Aécio Neves, com a escuta do seu achaque aos irmãos Batista, da JBS, expondo as estranhas de um sistema político eivado de corrupção.
Correndo por fora, Jair Bolsonaro (PSL), começou a acreditar que o seu discurso poderia emplacar, afinal de contas, após 27 anos de Congresso Nacional, ele sobreviveu relativamente incólume aos escândalos de corrupção que volta e meia estouram nos noticiários, com destaque inquestionável nos últimos 4 anos para a Operação Lava Jato. Operação esta que, convenientemente para a oposição, inicia sob a égide do governo do PT, em seu terceiro mandato, às vésperas de chegar ao quarto.
Alijado do poder há tanto tempo, em 2015, o PSDB decide não aceitar o resultado das urnas, abrindo várias frentes de ataque ao governo Dilma Roussef, o qual já vinha acossado pela crise econômica, tanto que passado as eleições, o pacote de maldades teve que ser aberto e a popularidade da Presidente que já não era aquelas coisas descresceu significativamente.
Para completar o receituário do desastre, elegeu-se, em fevereiro de 2015, presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB), um arqui-inimigo do governo e que conduz uma série de pautas-bomba contra a gestão que recém iniciava, às voltas com a crise econômica, já então definitivamente instalada.
Não poderia dar outra, Dilma é impichada e em seu lugar assume o Vice Michel Temer, impondo uma agenda de reformas absolutamente não aprovadas nas urnas, carreando para dentro do governo o PSDB. Pouco tempo depois, a Lava Jato, ou como diria, o senador Romero Jucá (MDB), num arroubo de uma lucidez cínica jamais vista, a sangria chegaria até eles, em especial aos principais fautores do golpe – Eduardo Cunha, Michel Temer e Aécio Neves. Ou seja, caiu a máscara geral. O discurso de combate a corrupção para tirar Dilma, fez água e a população que bateu panelas e vestiu a camiseta da seleção brasileira no impeachment da Presidente se sentiu traída.
É nesse cenário que o discurso tosco, truculento e agressivo de Bolsonaro começa a ganhar espaço. Ridicularizados pela pecha de paneleiros, patos da FIESP e assemelhados, aqueles que aderiram ao impeachment de Dilma, aceitaram a radicalização do discurso de Bolsonaro como saída para a sinuca em que se meteram, antevendo no pleito de 2018 a possibilidade de nova derrota para o PT, na figura sobretudo de Lula, sendo Bolsonaro o único capaz enfrentá-lo. Para garantir, contudo, que o PT não voltaria ao poder, era preciso inviabilizar a candidatura de Lula, até então líder disparado nas pesquisas. Serviço que coube ao juiz Sérgio Moro, no âmbito da operação Lava Jato, o qual, depois, seria recompensado com o Ministério da Justiça, quando fica escancarado de vez a parcialidade desse juiz, que mesmo com provas pouco consistentes, condena Lula no caso do tríplex do Guarujá/SP em tempo record, assim como em tempo record, dá-se o julgamento em segunda instância, no TRF4, em Porto Alegre/RS.
Limpado o caminho para Bolsonaro, este começa a crescer nas pesquisas, enquanto o PT debate-se numa dilema: insistir na candidatura de Lula ou lançar outro nome? Quando se decide, já era quase tarde: o pleito por pouco não se decidiu no primeiro turno, no qual, Bolsonaro obteve mais de 46% dos votos válidos. Apenas 4 pontos abaixo do mínimo para sagrar-se Presidente.
Os poucos dias que separaram o primeiro do segundo turno foram de uma verdadeira guerra. A militância petista acordou para o risco que a democracia corria e houve maciça adesão de outras forças, com acenos até mesmo do arqui-inimigo PSDB. Comitês suprapartidários foram criados e o discurso de certa forma tornou-se mais fácil: votar no Haddad não era apenas votar no PT, era votar pela democracia, contra o fascismo.
Mas o tempo foi curto para a reação e um fenômeno novo corria nas sombras: as fake News, via disparos em massa pelo whatsapp, adquiridos de empresas especializadas por empresas apoiadoras, em especial pela empresa catarinense de varejo Havan, chegando à incrível soma de R$ 12 milhões. Prática esta não mais permitida pela legislação eleitoral, que desde a última reforma vedou as doações de empresas, caracterizando-se, pois, o crime de Caixa 2, conforme matéria bomba da Folha de São Paulo, apenas uma semana antes do segundo turno. Tudo levado às barras da Justiça, sem decisão, no entanto, até a presente data – novembro de 2018. (É provável que o julgamento das contas de campanha da chapa, pelo TSE, venha a ser utilizado como uma salva-guarda pela Justiça contra um eventual governo desastrado de Bolsonaro/Mourão, afinal, o impeachment, com o Vice que Bolsonaro tem, não se revelará um remédio eficaz. Ao contrário, poderia guindar ao poder um presidente ainda pior. Juridicamente a cassação da chapa, então, pelo TSE, seria uma alternativa.)
Não obstante a derrota, ela não foi tão expressiva como se imaginava e o PT, apesar de todos os ataques, ainda sai como um partido grande da eleição, pois conseguiu eleger a maior bancada para a Câmara Federal – 56 -, fez 3 Governadores e Fernando Haddad fez mais de 45 milhões de votos. Diferente do que ocorreu com o PSDB, praticamente destroçado pela sua ânsia de chegar ao poder antes do tempo, ao questionar o resultado das urnas em 2015, embarcando na loucura de Aécio, de quem depois se soube o motivo: a corrupção que pretendia ocultar caso se elegesse presidente naquela ocasião. Assim como o PMDB que perde estatura. Já o inexpressivo PSL, o partido do presidente eleito, no embalo do discurso de Bolsonaro consegue fazer 52 deputados federais, a segunda maior bancada.
É inegável que houve, pois, uma renovação no Congresso Nacional, e que velhos caciques da política ficaram de fora, tais como Romero Jucá, Magno Malta, Roberto Requião, Marconi Perillo, Edison Lobão, Cassio Cunha Lima, Eunício Oliviera, Cristovan Buarque entre outros. Mas o que essa renovação efetivamente trará de novo, no sentido de renovação para melhor, só o tempo dirá, pois renovação nem sempre significa avanço. Pode significar também retrocesso e a se considerar o desejo do presidente eleito de levar o Brasil ao bons tempos de 50 anos atrás, é bem possível que efetivamente retrocedamos 50 anos.
É o que se observa com as primeiras medidas que, mesmo antes de assumir, já vem causando danos ao país – fusão de ministérios, mudança da embaixada do Brasil de Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, com potencial de provocar retaliação dos países árabes, grandes importadores de produtos brasileiros, em especial do agronegócio; alinhamento da política externa com os interesses americanos, o que pode nos levar a entrar em choque com a China, também outra grande compradora de commodities brasileiras, com destaque para o minério de ferro e a soja; e a saída de mais de 8 mil médicos cubanos do país, deixando desassistidos mais de 28 milhões de brasileiros, após declarações do presidente eleito de que alteraria as regras do acordo celebrado pelo Brasil com a OPAS – Organização Panamericana de Saúde, entre outras.
Estejamos, pois, preparados para o embate que esse “novo” governo promoverá na forma como dirigirá o país, a qual promete ser diferente de tudo o que se viu desde o governo Collor e que muitos traumas poderá ainda nos causar. Embate que começa especialmente pelo campo da cultura dado a forma como o presidente eleito encara as minorias, a oposição, o ensino em sala de aula e os fatos da história do país e do mundo. Essa é a linha de frente desse embate, onde será preciso combater as mentiras que continuarão a ser contadas – como o foram ao longo da campanha - e a reprodução do senso comum sobre esses temas, com o intuito de levar a termo uma pauta de retrocesso. Essa será a primeira linha da resistência: combater a mentira e a ignorância com a verdade e o esclarecimento.
Nesse sentido, a defesa da intelligentsia brasileira, representada sobretudo pelos professores e intelectuais é medida de urgência. Não por acaso a proposta da Escola sem Partido e das questões de gênero estão servindo de cavalo de batalha para demonizarem a atuação dos professores em sala de aula, a fim de enfraquecerem essa linha de resistência à cultura do ódio e da exclusão que pretendem implantar no país para levar a cabo um projeto de poder de longo prazo.
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