A eleição do presidente Jair Bolsonaro é inegavelmente um fenômeno sobre o qual ainda teremos muito que nos debruçar. A ela pode ser atribuída muitas causas, como o antipetismo, o voto de protesto, a vontade de mudança pura e simples, o fascismo de alguns, mas é inegável que a eleição de Bolsonaro teve uma certo sabor de revanche ou vingança da ignorância contra o esclarecimento. Esclarecimento que não nos deu todas as respostas, não satisfez todas as expectativas, nem nos livrou de todas as angústias, como se houvesse algum empreendimento humano que pudesse fazê-lo. Foi surpreendente perceber como as pessoas se aferraram ao candidato a quem coloram o adesivo de mito por conta das declarações que ele disparava sobre todos os assuntos, especialmente as questões relacionadas as pautas identitárias, contra as mulheres, os negros, indígenas e os LGBTs
Ignorância que há muito havia sido banida da arena do debate político dado o esclarecimento geral e o consenso que parecia reinar sobre determinadas pautas, tais como o respeito às mulheres, às minorias, ao direitos humanos e outras. Eventualmente ouvia-se uma ou outra voz dissonante, em especial a do atual presidente, às quais, contudo, ninguém, em sã consciência, dava muito crédito.
Mas eis que em 2014 um certo candidato derrotado nas urnas decidiu que não aceitaria o resultado e começou uma campanha de desconstrução da presidente eleita. Presidente que já havia feito um governo de fracas realizações no seu primeiro mandato e que, chegado no seu último ano, teve que esconder da população a crise que se avizinhava. Quando depois de eleita foi obrigada pelos fatos a desembrulhar o pacote de maldades que a contenção de gastos do governo exigia e os preços dos combustíveis, mantidos garroteados, tiveram de ser atualizados, deixando na boca de todos um gostinho de golpe eleitoral. Gostinho que pega carona no discurso de inconformismo do candidato derrotado. Correndo por fora, os escândalos de corrupção que vinham à tona com a apurações da Lava Jato, cuidadosamente conduzidos pela grande mídia para minar o quarto mandato de um governo popular.
Quando a queda tornou-se inevitável, ascendeu ao poder o vice conspirador e junto com ele seus comparsas, implicados na Lava Jato - Moreira Franco, Romero Jucá, José Serra, José Padilha. Logo em seguida estoura as escutas do candidato derrotado, pedindo R$ 2 milhões aos irmãos Batista, os mesmos que gravam o vice, agora presidente, no próprio Palácio. Resumo da história: o povo, que havia batido panela e desfilado em praça pública com a camisa da seleção, supostamente contra a corrupção, sentiu-se traído, e a ignorância que andava nas sombras perdeu a vergonha de se apresentar como alternativa, diante da derrocada daqueles que até então se apresentavam como os condutores da nação. Condutores representados, de um lado, por um partido que sempre havia jogado pedra nos outros por causa dos acobertamentos dos casos de corrupção, mas que quando assume o poder vê-se envolvido em uma série de escândalos e, de outro, por aqueles que lhes faziam a oposição mais forte, os quais também haviam cometido os mesmos erros, se não piores.
É nesse cenário que a ignorância perde a vergonha e assume o discurso que sempre a caracterizou, saindo das sombras para o centro do debate político, justamente às vésperas das eleições. Com o auxílio de táticas de guerra, através das redes sociais, em especial do whatsapp, espalha o medo e o ódio entre a população, com a disseminação de boatos e notícias falsas, com vistas a faturar o pleito, o que acaba ocorrendo para surpresa de muitos, em especial os partidos de esquerda, que ainda estão tentando entender o que aconteceu.
Ocorre que isso é próprio das democracias. Ainda que os meios utilizados não tenham sido os mais lícitos – mas isso cabe à Justiça avaliar – o fato é que muitas desses boatos e notícias falsas só lograram êxito por causa do baixo nível cultural da população e veja, estamos lidando com o triunfo da ignorância, quando a queda das grandes lideranças interditou o discurso, pois a ignorância não aceita argumentação. Ela se baseia em evidências e o que é mais forte na nossa sociedade de massa que o poder de uma imagem, mesmo quando ela seja uma fake News?
Manuela D’Avilla, a vice de Haddad, ostentando uma camiseta que ela nunca usou com os dizeres Jesus é travesti, basta para um crente evangélico formar a sua opinião, sobretudo quando essa imagem vem de um líder religioso ou de pessoas do seu círculo de relações no qual ela confia. Assim como a estória do tal Kit Gay, que supostamente teria sido distribuído para as escolas durante a gestão de Fernando Haddad como Ministro da Educação, a qual, depois, se soube falsa. A versão passou a ser mais importante que o fatos e as imagens desde sempre foram muito poderosas.
Era para esse fenômeno que a esquerda não estava preparada. O mesmo fenômeno que levou Trump ao poder nos EUA e o Reino Unido a aderir ao Brexit. Não à toa a campanha de Bolsonaro esteve em estreito contato com Steve Bannon, o ideólogo da campanha de Trump. Ficou nítida a importação de métodos, e o terreno, tanto aqui como lá, era propício para esse tipo de manipulação, afinal o nível cultural do brasileiro, como do americano médio é muito baixo - motivo porque os governantes querem assim mantê-lo.
Mas essa campanha também revelou algo inédito: aquilo que chamei acima como a revanche ou a vingança da ignorância, pois foi com orgulho que as pessoas abraçaram Bolsonaro, por mais evidente que fosse o seu despreparo para governar o Brasil. Despreparo que, ao contrário do que seria de se esperar, parecia aumentar ainda mais a sua adoração, numa histeria coletiva sem precedentes. Era como se os instintos reprimidos por séculos de cultura e civilização de repente encontrassem a oportunidade de se liberar, com a energia própria das pulsões reprimidas. Desejo de revanche diante das luzes que não nos deram todas as respostas, não satisfizeram todas as expectativas, nem nos livraram de todas as angústias, como a democracia, que, igual a todo empreendimento humano, também é falha e limitada. É desse caldo de cultura, que nasce o desejo de mudança e, na falta de algo melhor, quem se apresenta como alternativa é Bolsonaro, com a ousadia própria dos insanos que desconhecem o tamanho de governar um país do tamanho e a complexidade do Brasil.
É, contudo, do jogo da democracia que assim seja. O pior do regimes políticos, com exceção de todos os demais, como já referia a ele Churchill. Regime que nem sempre elege os melhores e os mais preparados, como seria desejável se fôssemos uma República de Platão, mas não numa democracia, onde todos podem ter a oportunidade de se sentir representados e, por certo o candidato eleito representa a parcela da população que votou nele.
Não se trata aqui também de preconceito intelectual.
A questão é que o Brasil pôs no poder alguém que não tem um plano de governo claro e estruturado – mudar-isso-daí, não é propriamente um plano de governo -, que se elegeu sem o suporte dos grandes partidos – PT, PSDB e PMDB - que desde a abertura democrática, bem ou mal, sempre foram os fiadores do regime democrático e não assumiu nenhum compromisso explícito de preservação do estado democrático de direito, ao contrário, mais de uma vez fez apologias aos regimes fortes.
Ou seja, nessa eleição, o Brasil fez a nítida opção pela ignorância ao eleger quem se apresentava como diferente de tudo-isso-que-taí, num voo cego que não sabemos onde nos levará.
Pior: fez isso com a gana e o orgulho de não saber. O que é ainda mais assustador, porque o fanatismo, já o provou a história, normalmente não traz bons resultados.
Deus queira, estejamos enganados!
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