A mentira parece ser uma constante no governo Bolsonaro. Nada a estranhar de um governo eleito com base em fake News e outros expedientes de baixa extração. Há que se ponderar, contudo, que uma coisa é mentir na arena da disputa eleitoral, como candidato, outra bem diferente e muito mais séria é mentir na condição de chefe de Estado e de governo. As consequências podem ser gravíssimas, como aliás, estão sendo, pelo que podemos constatar diariamente: uma pandemia que já ceifou a vida de mais de 200 mil brasileiros, por conta de um presidente que, desde o início da doença, negou a sua gravidade, indicou o tratamento precoce, com medicamentos sem comprovação científica de eficácia e, agora, cria toda sorte de obstáculos à vacinação da população.
Já diz o ditado que o exemplo vem de cima. Quando a nação é conduzida por um líder contumaz na mentira, seus subordinados perdem completamente o pudor de usar o mesmo expediente. Para ficarmos no caso da pandemia, o responsável pela condução da pasta e que devia estar na linha de frente do combate à doença, qual seja, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello (nas redes sociais já começa a ser mais conhecido como Eduardo Pesadelo) não se intimida de recorrer à mentira para remendar o espantalho no qual se transformou sua atuação como ministro.
Na semana passada, por exemplo, no episódio da falta de oxigênio em Manaus, o ministro alegou que não sabia da gravidade do fato, sendo que havia estado no local há poucos dias e, como se soube depois, já havia sido alertado pelas autoridades locais, pela empresa fornecedora do produto e até mesmo por sua cunhada, conforme ele mesmo confessou em discurso proferido no dia 11/01, em Manaus.
Na disputa com o governo Dória para começar antes a vacinação, o Ministro mentiu quando afirmou que os valores despendidos com o laboratório chinês Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, foram custeados com recursos do Ministério da Saúde. Afirmação repudiada com veemência pelo governador de São Paulo, dado que os recursos para compra das primeiras doses da Coronavac foram custeados integralmente pelo governo do Estado.
Depois, novamente o Ministro mentiu sobre o começo da vacinação, ao afirmar que o governo federal poderia ter dado início primeiro à campanha de vacinação, iniciada pelo governador João Doria, no domingo (18), logo após a aprovação da vacina pela Anvisa. O governo federal não dispunha de doses de qualquer vacina, tanto da Oxford/Astrazeneca, cuja importação da Índia restou frustrada, bem como da Coronavac, cujos 6 milhões de doses ainda estavam em poder de São Paulo.
E, finalmente, o ministro mentiu ao negar que tenha indicado o tratamento precoce com medicamentos sem comprovação científica de eficácia no tratamento da doença, quando há vídeos do Ministro preconizando o tratamento, secundando a fala do Presidente da República no mesmo sentido.
Isso tudo no espaço de apenas uma semana.
Agora vem a público que o INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais -, vinculado ao Ministério da Educação, mentiu para as autoridades e para os estudantes de que haveria salas suficientes para todos fazerem o ENEM, no último domingo (18), com no máximo 80% de lotação. Muitos alunos, por conta dessa mentira, foram barrados na entrada das salas que já excediam a essa lotação, não obstante ter se verificado uma abstenção recorde de 51,5%, equivalente a 2.842.332 alunos. Agora a Defensoria Pública da União ingressa novamente na Justiça Federal de São Paulo para pedir o adiamento da 2ª etapa do exame e que seja oportunizada a aplicação, em outra data, das provas da 1ª etapa a todos aqueles que foram barrados na porta das salas e àqueles que não compareceram pelo temor de contaminação ou mesmo por estarem impossibilitados pela doença. O que implicará, se o pedido for aceito, em redobrados custos para os cofres públicos.
Enfim, todos esses fatos ilustram a gravidade de um governo que adota como política a prática da mentira, pelos danos, não apenas patrimoniais que pode causar, como também pelo seu custo em vidas.
Da mesma forma, há que se fazer uma distinção entre a prática da mentira na vida privada, que se resume a uma questão de consciência, foro íntimo e desvio de caráter, da prática da mentira na vida pública, no exercício de um cargo público, o qual, pela honorabilidade e dignidade que emana, acaba revestindo aquele que momentaneamente o ocupa, sobretudo quando no exercício dos cargos do mais alto escalão, de uma credibilidade a toda prova, sobretudo entre a população mais simples. Credibilidade que transforma as palavras de um Presidente da República ou de um Ministro de Estado em verdadeiras armas de destruição em massa quando eivadas de falsidade.
Ora, a honorabilidade e a dignidade desses cargos não são valores caídos dos céus, mas fruto da construção centenária das instituições, as quais pressupõem, como contraparte, justamente que todo desvio de conduta no exercício desses cargos seja punido. É como quando vamos ao mercado e compramos produtos certificados pela vigilância sanitária, de que tais produtos estão em condições de consumo. Já pensou se essas autoridades de repente começam a mentir nessa certificação? O dano que tal mentira pode vir a provocar na saúde pública? Não é diferente, quando um Ministro da Saúde ou um Presidente da República vem a público fazer afirmações, no combate à pandemia, que contrariam as recomendações sanitárias das autoridades da área da saúde.
Sobre isso, aliás, recente estudo realizado pela Universidade de Cambridge, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, estima que o presidente pode ter sido responsável por pelo menos 10% das mortes verificadas no Brasil por conta de seus atos e discursos contra o isolamento social no combate à pandemia. O estudo, na verdade, é extremamente conservador, por basear-se no potencial de contaminação verificado apenas nos dez dias subsequentes a dois eventos patrocinados pelo Presidente ainda no começo da pandemia – a aglomeração provocada pelos atos antidemocráticos de 15/03/2020, em Brasília e a manifestação do Presidente, em pronunciamento oficial, no dia 24/03/2020, quando ele qualificou a doença como uma “gripezinha”. De lá para cá, foram outras tantas manifestações e eventos aos quais o Presidente deu azo que, sem sombra de dúvida, contribuíram para um recrudescimento ainda maior da doença no país e seu resultado morte.
Não à toa o Brasil é o 2º país em número de mortes pela Covid no mundo, o que o torna responsável por 10% de todas as mortes pela doença, embora tenhamos apenas 2,7% da população mundial.
A mentira praticada por uma autoridade pública, no exercício do cargo, sobretudo num cenário de pandemia tem sérias implicações para a degradação da saúde pública e para a honorabilidade e a dignidade do cargo que ocupa. Não será por outro motivo, que o art. 9º, item 7, da Lei 1079/50, tipifica como crime de responsabilidade do Presidente da República e dos Ministros de Estado atuarem de forma incompatível com a honra, o decoro e a dignidade do cargo.
É a dignidade e a honorabilidade dos cargos de Presidente da República e de Ministro da Saúde que precisam ser defendidas, sob pena de sofrermos, no curto prazo, danos ainda mais severos, no campo da pandemia e da economia e, no longo prazo, pela anomia em que seremos lançados, por conta da perda de credibilidade das instituições. Perda esta ocasionada por aqueles que, no exercício desses cargos, praticaram crimes e por aqueles que, investidos do poder de detê-los, se omitiram ou foram coniventes.
Até quando as autoridades dotadas desse poder vão se omitir?
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